A fantasia da carambola
Às vezes me pego a pensar. Esse momento solene acontece nas mesas de botecos da periferia. É sempre assim. A minha discreta companhia é uma silenciosa cerveja. Aprecio uma boa solidão. Mas, com moderação. Nessas ocasiões, faço um tour por minha vida passada. Revisito, principalmente, a infância e adolescência, que já vão se perdendo na inevitável bruma do tempo. Reencontro-me com essa feliz e efervescente fase do ser. Foi a época de ouro do lugar comum, onde era feliz e sequer sabia disso.
O pano de fundo das minhas recordações é sempre o mesmo: os casarões coloniais, as monumentais e frias igrejas barrocas, as noites misteriosas, os botequins desarrumados cheirando a cachaça, as mulheres de ocasião, as ruas íngremes e estreitas de Ouro Preto. Havia, naquela paisagem, um amigo para cada oportunidade. Alguns, momentâneos. Outros continuaram no tragicômico enredo da minha existência. Os incríveis anos 1970 bolem com o imaginário. As performances de Julian Beck e seu “Living Theatre” — nas escorregadias ladeiras- foram um dos símbolos daquela década sem igual.
As férias de fim de ano eram aguardadas com muita expectativa. Contava, então, com nove anos de idade. Passava o recesso escolar nas casas de minhas avós (materna e paterna), na zona rural. O lugarejo tem nome bastante suave, bem romântico: Glaura, que também já foi Casa Branca. A região é maravilhosa. Ali a natureza era exuberante. Permanecia nesse paraíso durante um mês. Os meus parentes viviam na “Pontaria”. Jamais descobri a razão desse nome. Recordo-me de um imenso gramado muito bem cuidado pela natureza, rodeado por frondosas árvores frutíferas. Um suave aroma de mangas, laranjas e jabuticabas invadia a área. Ao longe despontava magnífica montanha colorida de azul profundo. Era chamada “Serra da Ajuda” pelos moradores. Uma humilde capela em louvor a Nossa Senhora das Mercês e tosco cruzeiro de madeira completavam o bucólico cenário.
Lá o tempo parecia não correr. As brincadeiras (às vezes, nem tão infantis) não tinham hora para acabar. Não faltava oportunidade pra escapar com as meninas para o bambual, atrás da capela. Nesse “esconderijo”, notei a sutil diferença entre mim e elas. O “trem” das mocinhas era muito esquisito. Parecia o fruto da caramboleira do quintal de minha avó, mãe de pai. Aquela visão exótica provocava formigamentos na região abaixo da linha do equador. Mas não sabia o que fazer. Algumas férias depois, descobri que o sentido prático de tudo era tentar botar “aquilo naquilo” (o negócio era mais pragmatismo e menos lero-lero). Estava descoberto o caminho das Índias. Nunca mais saí da rota.
As noites de Glaura eram de intensa magia. Jamais vi céu como aquele. Milhões de estrelas acotovelavam-se, enquanto incontáveis pirilampos faziam evoluções na escuridão. A fraca iluminação artificial- que mais se assemelhava a uma lamparina dependurada num poste- contribuía para o espetáculo esplêndido.
Certa vez, percebi o quase imperceptível: em meio à penumbra, um casal esgueirou-se para a parte posterior da capela. Persegui sorrateiramente os dois (atitude de menino sapeca). E aí foi revelado o aspecto democrático do ato: em Casa Branca, quase todo o mundo gostava de praticar o profano atrás do sacro.