SENTIMENTOS DE TRISTEZA E MELANCOLIA SÃO COMUNS NO FINAL DO ANO
Especialista explica o aumento da angústia nas pessoas que não ficam satisfeitas ao realizarem balanços diante do fechamento de ciclos
No final do ano, a fisioterapeuta Vanda Fernandes, de 35 anos, costuma se sentir mais triste. “Bate aquela sensação de que mais um ano já se passou e a gente ainda não alcançou tudo aquilo que gostaria”, justifica Vanda. A sensação do publicitário Fernando D’Agostini, de 41 anos, é parecida. Ele não é “chegado às celebrações” que marcam essa época para a maioria das pessoas, e prefere ficar recluso.
“Realmente, meu astral não fica bom, e se você não vai ser uma boa companhia para as pessoas, é melhor não atrapalhar o ânimo de quem consegue se divertir”, afirma Fernando, que ainda recorre a uma frase do cartunista argentino Quino (1932-2020) colocada na boca de sua personagem mais famosa, a inconformada Mafalda, para dizer: “Para quê dar um ano novo para eles se já vão logo quebrando?!”. A tirada representa a avaliação de Fernando e de muita gente, ao demonstrar uma certa desconfiança sobre novos ciclos.
A psicóloga Marcelle Primo explica que o aumento da tristeza e da melancolia no final do ano está relacionada ao que Freud definiu como “a libido que não tem objeto para ser escoada”, gerando a sensação de vazio nas pessoas acometidas por ela. “Não é só o ano que acaba, é a chance de ter feito mais por si, é a vontade que ficou só no pensamento, é a arrumação de armário que não deu em nada, é a dieta que nunca foi começada e tudo aquilo que poderia ter sido e não foi, mesmo tendo sido parcialmente executado. A noção de fim, perda e luto fica aumentada nessa época, pois é o momento de finalizar, quer queira ou não, um período, e, junto, desse tempo, parte de nossos desejos, expectativas e frustrações se vão também”, detalha a especialista.
Outro fenômeno, conhecido pela expressão em latim “memento mori”, também tende a contribuir para o aumento da melancolia em algumas pessoas, pois é quando “nos lembramos que um dia também nos encerraremos, assim como o ano, e por isso a presença intensa da tristeza nesse período, já que percebemos que o tempo se foi e nós também estamos indo”. “No meio disso, a ausência de parentes que já se foram, ou dos que se foram ao longo do ano, marcam, mais uma vez, a ideia da passagem de tempo e da inevitável morte, o que reforça todo o afeto da melancolia de fim de ano. O mais comum nessas condições é que a tristeza venha em grandes e desagradáveis doses”, constata Marcelle.
FELICIDADE NÃO É OBRIGAÇÃO
A especialista afirma que “ninguém é obrigado a ser feliz”, embora haja todo um movimento sociocultural, impulsionado pela publicidade, que leve grande parte das pessoas a pensar o contrário, e, inclusive, se sentir ainda pior ao constatar um sentimento de tristeza no coração. “Nem tudo são flores! Para alguns, encerrar um ano maravilhoso e cheio de realizações, regado a espumante e boa comida, é um gesto de celebração do que foi feito e vivido. Para outros, não há nada a ser celebrado e uma necessária ideia de alívio, algo como ‘termina logo isso aqui, pelo amor de Deus’, é a única saída”, salienta Marcelle.
No entanto, a psicóloga não nega que faltar a “determinadas confraternizações causa mal-estar com os outros e tristeza por não fazer parte do grupo das pessoas alegres”. O resultado desses “encontros socialmente forçados” pode ser o surgimento de uma “inveja arrasadora”. “Entrar de cabeça no fundo do poço, no fim de ano e sem perspectiva alguma é trevoso. Em 2024, já existem grupos de WhatsApp que promovem celebrações atípicas para pessoas que não se encaixam em suas famílias ou ao espírito natalino. Temos soluções para todos os gostos e modalidades agora. Se pudermos escolher, vamos celebrar ou ‘descelebrar’ como podemos e conseguimos”, orienta Marcelle.
LIMITES E FALHAS FAZEM PARTE
A ideia de realizar um balanço ante o encerramento de algum ciclo costuma “trazer ideias sobre si, maiores ou menores, de realização ou fracasso”, pontua Marcelle Primo. Todavia, para a psicóloga, “independentemente do que foi feito, haverá sempre aquilo que não pode ser cumprido porque somos falhos e porque o dia dura somente 24 horas e precisamos dormir umas 6 horas”. “Nas horas restantes temos que nos dobrar e desdobrar em muitas atividades, e a falta é parte da existência. Deparar com a falta causa um impacto profundo em nossos corações. A primeira reação é a de ficarmos tristes. Só que o pulo do gato são as reações que vêm depois. O que fazemos com os nossos limites, falhas e faltas”, destaca.
Ela oferece uma série de estratégias, como “não barrar o sentimento”. “A melancolia é parte da vida assim como a alegria. O que não pode acontecer é a pessoa permanecer muito tempo melancólica, dessa maneira pode adoecer”, diz, sugerindo o sempre saudável equilíbrio. Partindo do filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), que dizia que “a melancolia é um afeto que permite genialidades”, Marcelle indica “ver um pouco adiante, realizar ações e se ligar a outros objetivos e desejos”. “Aproveitar o início de um novo ano que vem por aí para trocar de objetivos é uma saída. Quem sabe a dieta pode se tornar uma atividade física prazerosa? Ou o trabalho se tornar menos angustiante com uma atitude diferente às segundas-feiras? E aquele namoro fadado ao fracasso que pode se tornar um tempo de qualidade com os amigos?”, enumera.
APRENDER É PRECISO
A psicóloga Marcelle Primo avalia que “a ideia de fim de ciclo é cruel aqui no Ocidente”. “É só um fim que deságua num vazio sem fundo. Podemos, e deveríamos, aprender com os orientais que o fim é começo de outras coisas. Que algo é encerrado para outras coisas acontecerem”, propõe a especialista. Num mundo em que a tecnologia digital dá as cartas e impõe ritmos cada vez mais frenéticos, ela julga fundamental modificar nossa compreensão sobre a passagem do tempo. “Não dá para fazer tudo, algumas coisas precisam acabar para outras começarem, precisamos de espaço, tempo e renovações para continuarmos atravessando a vida”, reflete a psicóloga.
A noção de efemeridade, se tratada de forma menos apegada e mais fluida, também poderia trazer sentimentos diferentes da melancolia e da tristeza, de acordo com Marcelle. “O que está acontecendo agora, bom ou ruim, não vai permanecer. O tempo não vai parar porque você quer ou precisa, então, ao olhar para o caminho, é como se você estivesse no meio de uma curva. O que está para trás já está fora de alcance, a curva tem que ser bem percorrida, numa velocidade justa, com controle suficiente para que você não saia do trajeto”, metaforiza Marcelle que ainda arremata: “O que está por vir deve causar medo, expectativa e incitar o desejo de prosseguir, e, assim, ao mesmo tempo que não esquecemos do que foi vivido, vivemos o presente que nos é dado e o que está por vir é encarado com dignidade.”
Fonte: O Tempo
Imagem: Pixabay